Seguramente os mapas constituem relevantes peças denunciadoras do imaginário construído pelas civilizações relativamente à percepção do espaço. E como não poderia deixar de ser, impactam diretamente as expectativas sociais, sendo um dos seus vetores privilegiados a cartografia escolar (WALDMAN, 1997). |
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Neste sentido, um móvel evidente da desqualificação da África se corporificou, para além da forma enviesada como o continente foi trabalhado pela cartografia européia ao longo de muitos séculos, pela própria ausência da apresentação do espaço africano. Dito de outro modo: o continente ou foi gravado por estereotipias negativas, ou então, simplesmente lhe foi negada a própria aparição cartográfica. |
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Isto posto, estaremos neste texto abordando a omissão da representação de um Estado de base africana, o império almorávida, num material escolar brasileiro. No caso, trata-se do Atlas Histórico Escolar (ALBUQUERQUE, 1983), uma edição de cartografia histórica cuja utilização foi tradicional durante muito tempo no ensino brasileiro de segundo grau. |
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De outra parte, nosso contraponto será a edição de História da Guiné e Ilhas de Cabo Verde (PAIGC, 1975), material elaborado pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e das Ilhas de Cabo Verde (PAIGC), agremiação política fundada por Amílcar Cabral, um dos líderes que encabeçaram a luta dos africanos para colocar um ponto final na presença do colonialismo no continente. |
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Primeiramente, situemos alguns dados históricos sobre o foco central deste texto, a saber, a expansão dos almorávidas. O ano é 1030, quando se iniciou no Marrocos uma campanha religiosa com forte coloração política. Conduzida por Abdallah Ibn Yassin, sua meta era recuperar a influência que os berberes tinham perdido diante dos árabes. Sem obter audiência no país, Ibn Yassin migrou com um pequeno grupo para o Rio Senegal, onde fundou um movimento muçulmano fortemente proselitista, conhecido como almorávida1. |
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Em 1042, após converterem milhares de berberes saarianos e negros da região do baixo curso do Senegal - o Tekrur - os almorávidas encetaram uma audaciosa Jihad, qual seja, Guerra Santa. Em apenas 20 anos, esta os fez senhores de um vasto domínio, que se estendia do Senegal até o centro da península ibérica, incluindo todo Al-Andalus e ilhas Baleares. Para o exercício do seu poder, os almorávidas fundaram no Marrocos uma nova capital, Marrakesh, relativamente eqüidistante aos dois extremos do império (Imagem 1). |
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No transcurso destes eventos, os almorávidas islamizaram boa parte do antigo Império do Ghana, que se situava nos atuais Mauritânia e Mali. Sob seu governo, surgiu uma cultura mista, hispano-árabe-berbere-negra, influenciando o conjunto da população. Na África, o Estado almorávida alojou-se num espaço com largo histórico de ocupação humana. Seu eixo foram as imemoriais rotas de comércio que uniam o Mediterrâneo à África Negra, bordejando a certa distância o Atlântico e atravessando o interior do Magreb. |
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Dominando um território dotado de diferentes potencialidades naturais, com influente civilização urbana e mantendo controle sobre os cobiçados caminhos que respaldavam contatos comerciais entre a África e Europa, os almorávidas auferiram poder e glória durante cem anos, quando então foram sucedidos pela nova dinastia dos almoadas. |
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Tendo este cenário como pano de fundo, é possível coletar representações cartográficas ocultando aspectos que de um modo ou de outro, atendem a pressupostos de um imaginário histórico-espacial europeu. Um claro exemplo do que estaremos colocando sob discussão é o mapa da península ibérica durante o Século XII - tal como editado pelo Atlas Histórico Escolar - representando o emirado dos almorávidas e os reinos cristãos do período (Imagem 2). |
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Neste mapa, um dado que chama atenção é seu caráter altamente seletivo. Com efeito, embora o Estado almorávida compreendesse vasta área da África Ocidental, foi destacada unicamente sua porção setentrional, isto é, a península ibérica. Numa leitura imediata, o mapa sugere implicitamente os atuais Espanha e Portugal como atores privilegiados dos interesses geo-estratégicos dos almorávidas, o que não corresponde plenamente à verdade. |
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Recorde-se que apesar da Ibéria ter sido de grande importância para os almorávidas, por si mesma ela não explicava a organização espacial do império e tampouco, suas vicissitudes políticas, culturais e históricas. Nada neste mapa ocidental denuncia a íntima relação dos almorávidas com a África. Por tabela, exclui a proeminência geográfica da parte africana, a começar pelo fato da formação do Estado ter se iniciado no vale do Senegal. |
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Outro detalhe importante é que o mapa, apesar de mostrar o poder almorávida instalado na porção africana do Estreito de Gibraltar, isto em nada contradiz o viés eurocêntrico da representação cartográfica. Como se sabe, a invasão moura alcançou as plagas ibéricas cruzando este pequeno braço de mar (14,2 km). Na contra-mão, este marco natural tornou-se uma meta das guerras de reconquista. A saber: ele coaduna com a expectativa pela qual os mouros seriam empurrados de volta pelo mesmo estreito, explicando assim sua presença no mapa. |
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No que seria alegoria emblemática do imaginário ibérico da reconquista, seria importante rubricar que a não representação do império almorávida em sua plena extensão condiz igualmente com uma série de estigmas culturais responsáveis pela formatação de uma percepção negativa dos povos da margem sul do Mediterrâneo e do interior do continente africano. |
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No caso ibérico, estas noções são inseparáveis de populações que a historiografia portuguesa e espanhola classifica como “mouras”. Este grupo, substantivando bem mais uma entidade sociológica do que uma inferência antropológica, diz respeito a comunidades compostas por berberes e negro-africanos, com certa miscigenação com árabes e islamizados a partir do Século VII. Foi no seio destes grupos, em paragens hoje formadas pelo Saara Ocidental e Mauritânia, que Abdallah Ibn Yassin fez prioritariamente sua pregação, incluindo pois, amplos segmentos de origem negra. |
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Não seria a toa então, como bem registrou o historiador Antonio Borges COELHO (1973), que tambores de couro de hipopótamo fizeram eco nas planícies da Andaluzia, instigando o exército almorávida a seguir adiante. Evidência que se impõe por si mesma, tanto os tambores quanto a soldadesca nos remete diretamente para o hinterland da África Negra. Por esta razão, não deve causar surpresa a existência de imagens que registrando os mouros, mostram indivíduos com traços nitidamente negro-africanos (Imagem 3). |
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No que também importaria para esta discussão, recorde-se que a terminologia “berbere” - que freqüenta com assiduidade a literatura que versa sobre os almorávidas - não corresponde a um grupo racial. Pondera Mário Curtis GIORDANI, os berberes não se associam a uma unidade étnica: o que realmente existe são línguas de tronco comum faladas por uma heterogênea coleção de povos (1985:42/43). Assim, a palavra berbere subscreve uma família lingüística, abrangendo muitas nações diferentes, dentre estas, aquelas cujas características físicas são fortemente marcadas pela africanidade. |
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Com este pano de fundo, o fato dos mapas escolares sobre a reconquista repetidamente esconderem a representação cartográfica do império almorávida é muito reveladora do regime de estereotipias elaborado pelo mundo ocidental quanto “aos outros”. No caso, ela revela o sentimento constrangedor de que a Ibéria foi, no passado, dominada por grupos com forte inserção geográfica no interior do continente africano. Algo que, é óbvio, cria certa dificuldade para a legitimação de uma hegemonia que o Ocidente julga ser seu monopólio, e pior, contesta que aos negros caberia um papel de subserviência inata ao homem branco. |
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Entrementes, o dinamismo que magnetiza a sociedade humana incorpora o contraditório e a apresentação de outras versões, que se indispõem com os modelos eurocêntricos voltados para a representação do tempo e do espaço. É deste modo que chegamos ao mapa escolar do PAIGC. Representação cartográfica voltada para revelar o papel da África na construção da sociedade moderna, esta carta nos mostra a extensão completa do espaço almorávida, assim como sua relação com o Ghana e outros marcadores espaciais da geografia africana. Voltado para educar as novas gerações de africanos e inspirá-los na luta pela independência, este mapa é em si mesmo revelador da disparidade de móveis que magnetizam a construção da consciência política, assim como o importante papel desempenhado pela cartografia neste processo (Imagem 4). |
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Conclusivamente, podemos perceber que a liberdade não é apenas um sentimento ou uma forma de percepção do real. Ela é uma expectativa que busca uma materialidade, daí também ser, a seu modo, um compromisso com o espaço, com uma geografia que por pretender-se livre, é um privilegiado caminho para a esperança. |
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1. O termo seria uma transliteração castelhana da expressão árabe Al-Murābitūn, cujo significado exato é ainda hoje controverso. Há quem sugira que o termo proceda de Ribat, da raiz r-b-t, ou seja, fortaleza. Todavia, muitos advogam para Ribat, o significado de “preparado para a batalha”. |
| M. WaldmanPós-Doutorando no Instituto de Geociências, UNICAMP. Bolsista do CNPq. Africanista e Conselheiro do Centro Cultural Africano de São Paulo. |
| do mesmo autor > Apreensão objetiva do espaço
> Guilherme Blaeu
> Espanhóis no Marrocos
> Mapas, toponímia e modelos de percepção |
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Imagem 1 - Expansão Almorávida (In Ricardo da Costa, História Afro-brasileira, 2004). |
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Imagem 2 - O Império Almorávida na visão européia: No mapa, o domínio ibérico dos almorávidas e os reinos cristãos da reconquista (ALBUQUERQUE, 1983:102). |
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Imagem 3 - Mouros andaluzes jogando o El-Quirkat, ancestral direto do jogo de Xadrez (In Argmaur). |
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Imagem 4 - O Império Almorávida numa visão africana (PAIGC, 1975:29). |
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Bibliografia ALBUQUERQUE, M. M; et Alli. Atlas Histórico Escolar. 8ª edição, revista e atualizada. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura-Fundação Nacional de Material Escolar. 1983;
COELHO, A. B. Comunas ou Conselhos (Cadernos de Hoje, nº 13). Portugal: Prelo Editora. 1973;
GIORDANI, M. C. História da África Anterior aos Descobrimentos. Petrópolis, RJ: Editora Vozes. 1985;
PAIGC, História da Guiné e Ilhas de Cabo Verde. Porto, Portugal: Edições Afrontamento. 1975;
PAULME, D. As Civilizações Africanas. Lisboa: Publicações Europa-América. 1977;
WALDMAN, M. Metamorfoses do Espaço Imaginário. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Depto de Antropologia, FFLCH-USP. 1997. Acesso:http://www.mw.pro.br/mw/antrop_metamorfoses_do_espaco_imaginario.pdf |
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