terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O Relatório da Maioria

 
Do site The Advocate Dezembro/Janeiro de 2010 disponível em:www.advocate.com/Politics/Commentary/The_Majority_Report/ 
O Relatório da Maioria
 
Em 2010, o número de norte-americanos que apoiam a aceitabilidade moral das relações entre homens (gays) e mulheres (lésbicas) cruzou o divisor de águas representado pela marca dos 50/5. Este fato traz novos desafios e responsabilidades para uma comunidade que ainda luta por seus direitos.

Por Jonathan Rauch (tradução do original em inglês: Lula Ramires em 31/1/11)
 
Parece piada, mas não é, e pode-se escolher o desfecho que quiser. Foi assim… estudantes universitários entram numa doceria familiar em Indianapolis (EUA) e fazem um pedido de biscoitos e bolos em miniatura com as cores do arco-íris. Parecem que estão celebrando o Dia Nacional Fora do Armário. Os donos da padaria recusam o serviço, alegando que viola seus princípios morais.
Desfecho 1: Os estudantes, embora insatisfeitos, vão fazer o pedido em outra doceria e dizem aos repórteres que o incidente mostra a necessidade de diálogo permanente entre os LGBTs e a comunidade.
Desfecho 2: A prefeitura abre um processo por discriminação contra a doceria a fim de determinar se a mesma deve ser expulsa do local público onde está instalada há duas décadas. “É muito chato vê-los sair dali,” diz um funcionário da prefeitura, “mas não podemos tolerar qualquer tipo de discriminação como esta.”
Na vida real, a estória termina com ambos os desfechos. E muitos LGBTs não veriam problema nisso. Por que tolerar a discriminação?
Para o movimento pela igualdade LGBT, contudo, o desfecho 1 é a resposta correta—e o desfecho 2 é, sem dúvida, perigoso.
Trata-se de um novo desdobramento. Deriva do fato de que nós—LGBTs norte-americanos e aliados heterossexuais—vencemos o argumento central pelos nossos direitos. Consequentemente, temos que mudar. Muito do que o  movimento pelos direitos LGBT deu por certo e garantido até agora, e muito do que funcionou para nós no passado agora está equivocado e irá nos prejudicar. A virada que agora precisamos dar será a mais difícil manobra do o movimento já teve que fazer em algum momento, porque irá exigir que nós, deliberadamente, abramos espaço para a homofobia na sociedade norte-americana. Precisamos permitir um pouco de discriminação e desistir da mentalidade que defende a “tolerância zero”. É paradoxal mas é verdade: precisamos dar a nossos oponentes tempo e espaço que precisam para nos deixar vencer.
Permitam-me explicar o que quero dizer.
Primeiro, o que não estou dizendo: que a luta for igualdade já terminou. Claro que não. Muitos Estados proíbem o casamento gay. A proibição de homossexuais assumidos servirem nas Forças Armadas mostrou-se persistente, para nossa frustração (1). Jovens LGBT ainda enfrentam rotineiramente assédio e agressões, como todos observamos dolorosamente através de múltiplas reportagens sobre suicídios no ano que passou.
Mas todos sabemos que o impulso e a força estão do nosso lado. E mais significativo ainda é a fonte desta força e impulso. Em 2010, a notícia LGBT mais importante que se ouviu nos EUA veio do Instituto de Pesquisas Gallup: “O apoio dos norte-americanos à aceitabilidade moral das relações gays e lésbicas cruzou o simbólico limiar dos 50% em 2010. Ao mesmo tempo, o percentual daqueles que consideram que estas relações são ‘moralmente erradas’ caiu para 43%, o mais baixo na tendência observada pelo Gallup ao longo da década”.
Desde de...—bem, desde sempre— a maioria norte-americana tem encarado a homossexualidade como imoral, e a única dúvida era se devia ser tolerada ou reprimida. Em 2008, contudo, as linhas convergiram, com 48% de cada lado. Hoje, as relações entre pessoas do mesmo sexo são consideradas moralmente aceitáveis por uma margem de 52% a 43%. O argumento dos “valores morais” está do nosso lado.
Isto é um divisor de águas nas relações dos LGBT norte-americanos com nosso país. A crença de que a homossexualidade é moralmente errada sustenta todos os outros problemas que os homossexuais enfrentam. Quando o fundamento da desaprovação moral desaba, com o tempo, o mesmo deve acontecer com todas as superestruturas de discriminação e estigma. Para a maioria do público, o lugar do “moralmente desviante” passa ocupado por quem é contra os LGBT.
Então, vamos nos beliscar e dizer: os homossexuais norte-americanos e seus aliados estão entrando numa fase nova e sem precedentes. Pela primeira vez, estamos emergindo para o status majoritário.
Obviamente, isto é um bom motivo para comemorarmos, mas junto vem um desafio. O status majoritário muda o cálculo politico de um modo crucial, que nos obriga a mudar, e mudar rapidamente, para uma mentalidade majoritária. Quantas vezes você já ouviu alguém dizer algo do tipo, “O que há de ruim em exigir o casamento agora? Claro, o público talvez não esteja pronto ainda, mas se não insistirmos no casamento, não vamos conseguir nem sequer os benefícios da união civil.” Isto é uma forma de pensar como minoria. Ou: “Veja, não é educado chamar alguém de preconceituoso. Mas a boa educação não nos leva a lugar nenhum. Teremos que chamá-los publicamente assim para abrirmos caminho e avançar. Caso contrário, continuarão nos ignorando.” O pressuposto—geralmente são, para uma minoria marginalizada—é que ninguém consegue um centímetro se não exigir um quilômetro. Frank Kameny, o legendário militante pelos direitos civis, e muitos outros que o seguiram, apertou todos os botões e empurrou todas as alavancas que pudessem encontrar, e os LGBTs norte-americanos—inclusive aqueles cautelosos e que buscam o consenso como eu—lhes deve por isso.
O apoio da maioria não necessariamente faz com que a abordagem “acelerar ao máximo, frear jamais” seja ineficaz, mas altera o cálculo da relação custo-benefício. Fazendo pressão em todas as frentes ao mesmo tempo não é mais algo sem custos. Muito pelo contrário: o público, uma maioria estridente e agressiva aparece como intimidadora e ameaçadora, não resoluta e justa. Pior de tudo, parece opressiva.
Opressiva? Os LGBTs como opressores? Será que estou falando sério?
A ironia é abundante. Nada que os LGBTs tenham dito ou feito a nossos adversários chega perto da perseguição e da estigmatização que os homossexuais enfrentaram (e, entre os jovens, frequentemente ainda enfrentam). Ainda assim, os que se opõem aos direitos LGBT tem sido ágeis, de fato mais ágeis do que nós mesmos, em compreender que a dinâmica está se alterando. Eles percebem que os fundamentos morais de sua aversão à homossexualidade está desabando diante de seus olhos. A esperança que lhes resta é virar a mesa clamando que eles, e não os LGBTs, são as verdadeiras vitimas da opressão. Vendo que conseguimos empurrá-los para o lugar de “desviantes morais”, vão nos acusar de sermos “violadores dos direitos civis” alheios.
Por isso, criaram uma narrativa que diz mais ou menos o seguinte:
Os defensores dos direitos LGBT não querem apenas a igualdade jurídica. Querem tachar qualquer pessoa que discorde deles, sobre o casamento ou qualquer outra coisa, como o equivalente ao segregacionista dos dias atuais. Se você acha que a homossexualidade é imoral ou pode ser mudada, eles vão mandar você passar por cursos de reciclagem, cassarão seu registro profissional de psicólogo ou expulsarão seu grupo estudantil evangélico da universidade. Se você se opuser à realização de casamentos entre pessoas do mesmo sexo ou a alocar crianças para serem adotadas por estes casais, esfregarão na sua cara uma multa por discriminação, você perderá sua condição de utilidade pública ou te forçarão a escolher entre seu trabalho e sua consciência. Se você discordar deles profundamente, dirão que você é preconceituoso, uma pessoa tomada pelo ódio.
Não vão se deter até que estigmatizem os principais ensinamentos religiosos nos quais você acredita como sendo fruto do preconceito, proibirão seus cultos religiosos por ser discriminatórios e retirarão milhões de norte-americanos religiosos da praça pública. Mas seu alvo é mais abrangente do que apenas a religião. Sua politica é a da tolerância zero para aqueles que discordam deles e utilizarão a lei para fazê-la cumprir.
No fundo, não estão interessados em compartilhar o país com todos. O que querem é nos varrer, nos liquidar.
Muitos LGBT não conseguem levar esta narrativa a sério, em parte porque em suas formas mais extremas soa tão paranoica e maluca—como quando Tony Perkins, o presidente do Conselho de Pesquisa sobre a Familia, declarou recentemente, “Se este caso [decisão que derrubou na Califórnia a proibição do casamento gay] permanecer em vigência, teremos passado, numa única geração, de 1962, quando a Bíblia foi proibida nas escolas públicas, à proibição de se professar crenças religiosas nos Estados Unidos.” Seria um falso conforto, no entanto, supor que a narrativa dos “LGBTs como opressores” não possa e não vá criar raízes entre os moderados e conservadores respeitosos vinculados ao status quo—pessoas como Michael Gerson e Peter Wehner, que atuaram no Governo Bush, que escreveram, “Se o casamento [gay] for considerado um direito civil—e se os que a ele se opõem forem, portanto, considerados o equivalente dos segregacionistas dos dias atuais—as igrejas poderão, no fim das contas, serem obrigadas a agir de modo a cumprir o espírito e a letra da lei ‘anti-discriminatória’ ao invés da ortodoxia dos ensinamentos cristãos”. Declarado nestes termos, a alegação torna-se verdadeira. Não pensemos que se trata de um mero estratagema, inventado para assustar os bolsos abertos de doadores. É o produto de um genuíno e amplamente difundido temor de marginalização e estigmatização sobre a direita cultural—e é bem mais dilacerante como resultado.
Num mundo instável onde os direitos frequentemente colidem, não se pode evitar o argumento que indaga onde termina o dissenso legítimo e onde começa a discriminação intolerável. O que podemos fazer é evitar uma armadilha que o outro lado nos preparou. Incidentes de fúria contra “os que cometem atos de ódio”, abuso verbal contra os adversários, boicotes a donos de pequenos negócios, cumprimento absolutista das leis antidiscriminatórias: estas e outras táticas de “tolerância zero” figuram em narrativas de “perseguições exercidas pelos homossexuais”, e este é o motivo pelo qual nossos adversários os divulgam com tanto estardalhaço.
O outro lado, em suma, conta conosco para que lhes passemos a arma do “fazer-se de vítima”. Nossa tarefa é negá-la a eles.
Duas importantes mudanças estratégicas precisam percorrer um longo caminho para chegarmos a este ponto. Primeiro, aceitar exceções legais que permitam às organizações religiosas discriminar LGBT toda vez que, ao fazê-lo, nos seja imposto um custo que podemos suportar. Segundo, deixar de usar as acusações de “preconceituoso” e “pessoa movida pelo ódio”.
Na comunidade LGBT, não exercer atitudes não absolutistas perante à discriminação é algo controvertido, para dizer o mínimo—sobretudo porque temos em nossas cabeças o paradigma da discriminação racial. Nos Estados Unidos de hoje, no entanto, o modelo racial é um exagero para os LGBT. A injustiça persiste, sem dúvida, mas a oposição está morrendo de pé e a discriminação está em declínio. E, ao contrário da supremacia branca, a rejeição da homossexualidade ainda é intrínseca a doutrinas ortodoxas nas três principais religiões. Isso vai mudar e já está mudando (evangélicos mais novos aceitam muito mais as relações entre pessoas do mesmo sexo que seus pais), mas por ora é um fato com o qual temos que conviver.
Antes de darmos de ombros e responder, “E daí se for algo da religião? Continua sendo preconceito, e ainda assim é intolerável,” precisamos lembrar que a liberdade religiosa é um princípio fundador dos Estados Unidos. Faz parte do DNA nacional, sem esquecer que está na própria Primeira Emenda da Constituição. Se decidirmos brigar com isso ou, pior, permitir que sejamos levados a uma guerra contra isso, nossa última tarefa se tornará imensamente mais difícil.
Lembrem-se também que a batalha por igualdade plena será vencida no centro político. Os liberais já estão conosco mas os homófobicos nunca estarão. Progredimos ao convencer os setores do centro que estavam abertos ao convencimento de que nossos amores e nossas famílias não fazem mal algum aos outros e outras, não representamos qualquer ameaça aos valores dominantes. Especialmente agora que o apoio da maioria está com a gente e nos fortalece, dar um grande passo além, ser razoável e, ainda mais, parecermos razoáveis, é essencial.
Nem toda acomodação religiosa é valida, e nem sempre fica claro a linha de separação. Mas a abordagem lúcida é fazer um gesto em prol da acomodação, e não afastar-se dela, sempre que pudermos suportar os custos. Claro, qualquer tipo de discriminação tem seu preço, mesmo que seja apenas em relação à nossa dignidade. Tolerar a intolerância é doloroso. Mas os estudantes da Universidade de Indiana que foram fazer o seu pedido de bolinhos em outra doceria e se colocaram a favor do diálogo entenderam exatamente a questão. Se estudantes evangélicos querem montar um grupo cristão no campus e isso exige o compromisso com princípios bíblicos (leia-se: contrários aos LGBT), podemos conviver com isso. Se a Caritas Católica não quer dispor crianças para adoção por casais do mesmo sexo em Massachusetts mas muitas outras agências farão este gesto no lugar delas, podemos conviver com isso também. Mesmo que não se acredite, como é o meu caso, que a liberdade religiosa, assim como a igualdade de direitos para LGBTs, seja um direito humano básico, o caso pragmático em relação a acomodações religiosas é claro: não nos interessa de forma alguma sermos vistos como ameaça à liberdade religiosa.
A recalibração retórica é igualmente importante. Em certa medida, surpreendente até, os opositores aos direitos LGBT avançaram a alegação de que nós os rotulamos de preconceituosos toda vez que abrem a boca. Com excessive frequencia alteramos o alvo das acusações de preconceito com certa promíscuidade. Com excessive frequencia não conseguimos distinguir entre pessoas que têm repugnância de nós porque somos LGBT (um número pequeno, atualmente) e pessoas que discordam de nós quanto ao casamento, digamos, ou ao serviço militar (um número muito maior). Intencionalmente ou não, nos posicionamos no sentido de que qualquer um que não esteja totalmente do nosso lado é uma pessoa movida pelo ódio.
Há verdadeiros preconceituosos contra LGBTs na sociedade, mas estão diminuindo em número e força. As pessoas que nos agora importam são as que podem ser persuadidas e que estão lutando para acreditar que podem abrir espaço para nós nos mesmos termos mesmo que não concordem com nossa “opção”—pessoa que não nos desejam nenhum mal mas que lutam para adaptar velhas ideias a uma nova situação e que se preocupam com o ritmo alucinante da mudança cultural. Nossa função é abrir os olhos destas pessoas e não esbofetear seus rostos.
Não, não estou dizendo que a palavra que começa com P deve ser banida como já aconteceu com a palavra que começava com N ou que temos todos que concordar sobre quem merece e quem não merece ser classificado como pessoa movida pelo ódio. O que estou sugerindo é que com a posição majoritária deve vir um ajuste de mentalidade: um reconhecimento de que o aniquilamento retórico é uma arma cujo tiro pode sair pela culatra, uma arma que nossos oponentes já estão usando para nos pintar como os verdadeiros preconceituosos, os que realmente odeiam aos demais, a verdadeira ameaça aos direitos da minoria e aos valores da tolerância.
Recalibrar não é recuar. É uma estratégia. É verdade que ela trata nossos adversários com mais gentileza e compaixão que jamais demonstraram para conosco—mas clamamos por igualdade e não vingança. Obviamente, devemos criticar nossos opositores. Mas não deveriamos tentar usar a lei ou a coerção social para silenciá-los ou forçá-los a repudiar suas visões, sendo que deveríamos reservar a retórica extremada para os casos também extremos. Se querem virar as costas para os casamentos entre pessoas dos mesmo sexo ou alegar que a homossexualidade é pecado ou doença, bem, que o façam. O verdadeiro sentido do movimento LGBT não é garantir a igualdade para as pessoas LGBT; é maximizar a liberdade das e dos americanos para que sejam verdadeiros consigo próprios—a liberdade que nos foi negada. A última ciosa que um movimento de ex-párias deve buscar é infligir a mesma agonia a qualquer outra pessoa.
Para qualquer movimento pelos direitos de uma minoria, o momento de tornar-se maioria é fácil de perder. Com pouco ou nenhum aviso prévio, a tática que faz sentido para uma minoria insurgente deixa de funcionar. Os militantes se veem em alto mar, o que dizem não tem mais ressonância, seu estilo fica antiquado. No movimento pelos direitos civis dos afro-americanos, a vanguard ativista perdeu o rumo nos nas moitas do Black Power e de expressões como “isso é absolutamente necessário”. De modo semelhante, o movimento feminist perdeu a hora, chegando a um beco sem saída com uma mentalidade de minoria diante da Emenda de Igualdade de Direitos, e por isso desapareceu.
O movimento LGBT terá de mostrar uma incomum previdência e tentar ser uma exceção. Nosso próprio instinto sera pressionarmos por vantagem para nós, explorar a força que acumulamos e empurar o outro lado para o mar. O mundo hetero já criou todas as possívels desculpas esfarrapadas para ofender aos LGBTs, sendo nisso em geral liderado pelas religiões institucionalizadas. Então agora nós temos que ser tolerantes com eles?
Bem, sim. Na medida em que a posição pró-LGBT se torna majoritária, o fardo da tolerância—e se trata de um fardo—passa o nosso campo. Este é o ajuste mais difícil que um movimento de minoria precisa fazer. Nossos oponentes estão apostando que vamos falhar nesta tarefa. De fato, esta é agora sem dúvida a estratégia que têm nas mãos.
Nós, LGBTs, e nossos aliados não estamos preparados para pensar a nós mesmas/os como constituindo a maioria. E ainda não chegamos lá totalmente, pelo menos não de maneira sólida. Mas os benefícios e, sim, os fardos de ser maioria estão recaindo sobre nós com uma velocidade maravilhosa. Deixaremos escapar a oportunidade se não começarmos a pisar no freio agora mesmo.
  
tradução: Lula Ramirez

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