segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O crack começou a matar crianças há 18 anos, mas autoridades não agiram. E o número de dependentes pode chegar a 1,2 milhão

Mais de uma década perdida

Por Andréa Cordioli e Gilberto Nascimento
 Há 18 anos, o crack começava a se alastrar de forma devastadora nas periferias dos grandes centros urbanos do País. Em 25 de maio de 1992, o jornal Folha de S.Paulo publicava a reportagem “Crack leva crianças e jovens à morte”, na qual mostrava que meninos de rua viciados traficavam, roubavam e acabam morrendo em confrontos com a polícia ou gangues rivais.

À semelhança dos guetos do Bronx –  bairro novaiorquino –, São Mateus, área pobre do extremo leste de São Paulo, era naquele momento a face mais visível de um futuro trágico e assustador. Não se falava ainda na “cracolândia”, o hoje conhecido reduto de consumidores do crack no centro velho paulistano, nas proximidades da Estação da Luz, que choca e escandaliza a classe média.

Somente em São Mateus, num período de cinco meses – entre dezembro de 1991 e abril de 1992 -, 15 adolescentes já haviam morrido por causa do crack, segundo levantamento da Prefeitura de São Paulo e do Centro de Defesa da Criança, do bairro. As autoridades demoraram para agir, muito pouco ou quase nada foi feito. Não houve uma política pública capaz de evitar que, hoje, o Brasil alcançasse o posto de maior mercado de crack na América do Sul, com mais de 1,2 milhão de usuários e idade média de 13 anos para início do uso da droga. Esses dados foram apresentados pelo psiquiatra especializado em tratamento de dependentes de crack Pablo Roig, em audiência pública na Câmara dos Deputados, em 2010.

“As autoridades não se mobilizaram diante do crack, tanto do ponto de vista policial no combate ao tráfico quanto nas ações preventivas e no tratamento dos jovens consumidores”, constata o advogado Ariel de Castro Alves, vice-presidente da Comissão Nacional da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e presidente da Fundação Criança de São Bernardo do Campo. Quase 20 anos se passaram e o cenário parece igual. Nove em cada dez cidades brasileiras não têm nenhum programa municipal de combate ao crack. Oito, em cada dez, não têm sequer um Centro de Assistência Psicossocial (Caps) – serviços de saúde municipais implantados no Sistema Único de Saúde (SUS) e considerados a espinha dorsal da atual política nacional de enfrentamento ao crack.

O quadro desalentador foi explicitado em um recente estudo divulgado pela Confederação Nacional de Municípios (CNM), que abrangeu 3.950 cidades brasileiras (71% do total). A entidade avalia que o crack “tomou proporção de grave problema de saúde pública no país, envolvendo os diversos segmentos da sociedade”, de acordo com o estudo, e já atinge 98% das cidades brasileiras. “O que estava restrito inicialmente a um número reduzido de jovens pobres da periferia e do centro de São Paulo hoje tem efeitos catastróficos e devastadores, envolvendo adolescentes e jovens de áreas carentes e também da classe média”, afirma Ariel Alves.

A Fundação Casa, de São Paulo (antiga Febem), agrupa hoje cerca de sete mil internos, dos quais 37,5% por tráfico de drogas. Esse número representava 14% em 2006. “O que a gente nota hoje em dia é que existem muitos jovens envolvidos com o comércio de entorpecentes. Às vezes, o jovem é apenas um usuário ocasional e vê o tráfico de drogas como um meio de emprego. Isso é o que mais tem nos preocupado”, diz a presidente da entidade, Berenice Gianella.

Para Ariel Alves, as autoridades só passaram a se preocupar com o crack depois que a droga começou a atingir setores da classe média. “Enquanto atingia só as camadas mais pobres, não havia tanto interesse. Só nos últimos dois anos, depois de ouvirmos falar tanto da cracolândia e de jovens de setores mais privilegiados da sociedade também começarem a usá-lo, é que o problema despertou a atenção das autoridades”, denuncia. Na última campanha eleitoral, o crack foi tema de debates entre candidatos à presidência da República e aos governos estaduais. O governo federal anunciou, no ano passado, um pacote de medidas para combater o problema. “Mas isso já deveria ter sido feito na década de 1990. Agora, estamos colhendo os frutos dessa omissão”, sustenta Ariel.

Hoje, a situação é alarmante, principalmente em estados como São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e Fortaleza, além do Rio de Janeiro, onde os próprios traficantes tentavam a impedir a entrada da droga no início, por avaliar que ela poderia diminuir o lucro obtido com a maconha e a cocaína. “Atualmente, os casos mais crônicos e graves envolvendo adolescentes em situação de criminalidade estão vinculados ao crack. O crescimento do tráfico faz aumentar as causas de internação de jovens infratores”, observa o representante da Comissão Nacional da Criança da OAB. “Os roubos lideravam majoritariamente os casos de internação. Agora, o tráfico, que representava 5%, chega aos 25% e praticamente empata com os roubos. Os adolescentes e jovens roubam para comprar a droga e também são assassinados em maior número por causa de dívidas com traficantes. Ainda por causa do crack, aumentam os casos de ameaças de morte, vindas do tráfico, e de exploração sexual infanto-juvenil. Meninas se prostituem para usar a droga.”

O tratamento de jovens dependentes

É evidente a propagação do crack nos grandes centros urbanos. Mas, hoje, não existem índices sobre apreensões da droga no país. Policiais apreendem diariamente toneladas de maconha e cocaína, mas nada de crack. Não se sabe por que esse não é o foco das autoridades policiais, tanto na atuação repressiva quanto investigativa. Quando são questionados, os responsáveis pela área de segurança não sabem dizer nada sobre o número de apreensões.

Berenice, a presidente da Fundação Casa, lembra que a droga entra de maneira abundante pelas fronteiras brasileiras e vê a necessidade de mudar essa realidade. “Hoje, além de uma atuação grande nas áreas de segurança pública e saúde, seria preciso também pensar em políticas de prevenção. Ou seja, uma política que vá além do tratamento, senão daqui a pouco teremos milhões de jovens envolvidos com drogas e milhões de recursos para a saúde e com uma eficácia pequena”, considera.

Os Centros de Atenção Psicossocial  são um exemplo disso. Luciana Sayago França, psicóloga do Caps- AD (Álcool e Drogas) em Diadema, na Grande São Paulo, reconhece que muitas prefeituras correram para abrir esses centros, visando ao repasse de verbas do governo federal, mas com equipamentos sem estrutura adequada e com profissionais pouco qualificados. Somente a partir de 2002 esses centros – surgidos após a reforma psiquiátrica (que substituiu os antigos hospícios ou manicômios) – passaram a receber financiamento do Ministério da Saúde. Em 1990, havia apenas 12 Caps no país. Pularam para 1.541, segundo levantamento feito em junho do ano passado.

Há seis anos e meio no Caps, Luciana acumulou experiências e dificuldades no atendimento a jovens dependentes. Ela já sofreu agressões verbais, foi ameaçada de morte por uma usuária de crack e presa numa sala por um adolescente armado, que achou que ela o tivesse visto fumando maconha. Atuando diretamente no dia a dia dos pacientes, ela diz ser necessário impor a noção de limites. “Muitos reagem mal a isso.” Na avaliação de Luciana, os centros são adequados para alguns casos de dependência e abuso. “Não há um tratamento que sirva para todo o mundo. O melhor é aquele com o qual o paciente se identifica, pois o segredo de um bom resultado no tratamento é a aderência. Não existe tratamento a distancia ou por telepatia”, observa. A psicóloga defende o funcionamento do Caps durante 24 horas. Atualmente, o atendimento é dado das 8 horas às 17 horas. “Ninguém escolhe a hora que entra em crise. Mas é preciso tomar cuidado para não se tornar o atendimento meramente assistencialista. Em vez de oferecer um leito para se criar um vínculo terapêutico e trazer o paciente de fato para o tratamento, tudo pode se resumir apenas a uma relação utilitária.”

Atualmente, muitos pacientes faltam às consultas no Caps. A abstenção é alta. “Muitos pacientes não vêm por vontade própria. Logo, não ‘investem’ afetivamente no tratamento. Existe também aquela ambiguidade inicial de todo dependente. Eles amam e odeiam as drogas. Uns dias querem muito parar, em outros, não”, diz Luciana. As limitações apontadas são endossadas por Ariel de Castro Alves. “As ações nos últimos anos são positivas. Mas os Caps ainda não têm condição de dar uma resposta para aqueles casos mais crônicos de usuários de crack. É dado um bom atendimento para quem está iniciando no uso da droga. Mas tem situações em que não há como não internar”, analisa o advogado. “No máximo, o paciente fica em observação por 48 horas. Também há a necessidade de leitos para esse tipo de caso em todos os hospitais e prontos-socorros, mas isso não existe. As clínicas públicas de atendimento aos usuários são raras. A maioria é particular, e a quase totalidade dos usuários não tem a menor condição de pagar uma clínica dessas, que cobra em torno de R$ 4 mil ao mês”, constata Ariel.

A presidente da Fundação Criança cita exemplos como o de um garoto de 13 anos, de São Bernardo do Campo, que registrou, em um único ano, 25 entradas em um centro de ressocialização. “É uma prova dos efeitos devastadores do crack. O adolescente vai, tem um atendimento, mas depois volta para a droga”, lamenta Ariel. “Quando o jovem está na Fundação Casa, ele é levado para o atendimento no Caps. Quando sai, nós agendamos a primeira consulta. Mas depois, muitas vezes, ele desiste do tratamento por ‘n’ dificuldades. E não há a busca desse adolescente para voltar ao atendimento”, relata a presidente da entidade. “Quer dizer, se o adolescente tem problemas severos de envolvimento com drogas, ele não vai voltar para o Caps e vai se envolver com drogas novamente”, diz Berenice.

Requalificação dos serviços

O enfrentamento ao crack necessita de uma requalificação de todos os serviços na área social e de saúde, além de uma integração de todos esses serviços. Em busca desse objetivo, a Fundação Criança, de São Bernardo, iniciou, no ano passado, uma experiência chamada residência terapêutica – uma clínica de drogadição específica para crianças e adolescentes em situação de rua. Dez adolescentes, apontados como os casos mais graves, estão sendo atendidos. Outros, com menor envolvimento com a droga, são encaminhados para comunidades terapêuticas ou para os Caps.

“É uma experiência interessante e precisa ser ampliada”, acredita Ariel Alves. O advogado e militante da causa da infância busca ideias inovadoras no enfrentamento ao crack. Segundo ele, o discurso dos programas preventivos ainda é baseado nos efeitos e consequências apenas da maconha, heroína e cocaína. Esse repertório, ressalta, não foi atualizado. “Os setores envolvidos não sabem como tratar o crack preventivamente e sequer sabem o discurso a ser utilizado”, critica.

Outro problema apontado pela psicóloga Luciana França é a discriminação enfrentada pelos jovens dependentes. “Ainda hoje, há muito preconceito com relação à dependência, inclusive entre profissionais de saúde. Não é raro ouvirmos relatos de pacientes que sofreram maus-tratos no pronto-socorro quando chegaram lá com um quadro de intoxicação aguda ou crise de abstinência. É relativamente recente a ideia da dependência ser uma doença que requer cuidados médicos. A valoração moral/religiosa ainda se faz presente”, acentua.

O dado positivo é que soluções começam a ser pensadas. Para reverter o trágico quadro atual, a presidente da Fundação Casa propõe uma parceria com as escolas. “A escola pode ajudar muito na prevenção, porque um grande indicador do envolvimento com a criminalidade e com as drogas é a frequência à escola. Mais de 80% dos nossos jovens abandonaram os estudos”, aponta Berenice.

A presidente da República, Dilma Roussef, garante que o crack encabeça a lista de suas preocupações na área da infância e adolescência. Em setembro, durante a campanha eleitoral, a então candidata assumiu o compromisso, em reunião com os dirigentes do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), de não medir esforços no combate ao uso da droga, principalmente entre crianças, adolescentes e jovens. Dilma pediu aos especialistas e aos integrantes do conselho que pensassem em uma maneira de dar retaguarda ao trabalho dos Caps, buscando a internação dos adolescentes e jovens nas fases mais agudas de tratamento. O plano integrado de enfrentamento ao crack e a outras drogas, anunciado pelo governo federal, fala em ampliação dos leitos e clínicas, mas não se sabe se haverá, por exemplo, médicos psiquiatras suficientes para garantir o sucesso do projeto. Essa resposta é esperada pela sociedade, mas não mais em 20 anos.



A infância roubada pelas drogas

Assim que Cristiano (nome fictício) desceu as escadas de uma unidade da Fundação Casa, em São Paulo, logo se viu: em nada lembrava a imagem de um menino de 14 anos. Dentes quebrados pelo uso do crack, manchas numa pele já endurecida e um olhar tão profundo que calava qualquer resto de infância que pudesse haver ali.

Cristiano começou a usar drogas aos 10 anos. Provou a cocaína e depois foi direto para o crack. Chegava a fumar quatro pedras em um dia e, com isso, não demorou em começar a assaltar em busca de dinheiro. No dia em que foi pego pela polícia, estava em seu sexto assalto à mão armada.

Desde os 10 anos, diz, perdeu a conta de quantos assaltou realizou. Afirma que nunca matou, mas fala da morte como se fosse uma companheira íntima. Seu pai, também dependente químico e assaltante, foi morto quando o garoto tinha 6 anos. “Ele morreu na mão dos policial (sic). Eu vi quem matou, mas já mataram esse cara.”

Cristiano não falou nada ao ver seu pai alvejado na rua. “Fiquei quieto. Fui para casa e contei para a minha mãe.” O garoto cansou de ver assassinatos por causa de dívidas de cinco reais ou de roubos malsucedidos, além de pessoas mortas nas ruas pelos efeitos do crack. Perguntado se sentia medo, o menino sequer vacilou na resposta: “não, senhora.”

Cristiano abandou a escola na sexta série, ficou morando com a avó no interior do Rio Grande do Sul, enquanto a sua mãe veio para São Paulo tentar a vida. Desanimada com a dependência química do neto, a avó pediu para que a filha mandasse buscar Cristiano.

A tentativa de estancar as drogas foi em vão. Aos 13 anos, o garoto foi morar com a mãe em uma favela em Guarulhos e não demorou muito para conhecer o “patrão”, como é chamado o homem que comanda o tráfico no local. “Em qualquer lugar você acha droga”, diz.

Cristiano conta que o juiz disse que ele ficaria na Fundação Casa mais para ser afastado das drogas do que propriamente pelas contravenções cometidas. O menino já havia tentado tomar medicação em liberdade, mas parava poucos dias depois e voltava para o crack. “Eu ficava muito na rua, e os amigos chamavam e eu ia. Aqui fico trancado.” Há cinco meses sem fumar, Cristiano diz que, hoje, não tem mais vontade de usar o crack. “É só eu querer”, diz, pensando na liberdade.

O adolescente Vinícius (nome fictício), de 16 anos, também está na Fundação Casa e concorda que é preciso vontade para abandonar as drogas. Mas Vinícius, ao contrário de Cristiano, começou a fumar por curiosidade, como muitos, e resolveu experimentar o crack, tornando-se viciado por seis meses.

Tendo rapidamente percebido os efeitos da droga sobre o seu físico, ele mesmo pediu para ser internado em uma clínica. Sua família não teve recursos para colocá-lo na Fazenda da Esperança, em Guaratinguetá – onde imaginavam ser o local ideal –, e Vinícius foi para uma chácara religiosa em Caraguatatuba, próximo de onde morava com o pai. Foram quatro meses em tratamento.

Vinícius diz que a religião o livrou do crack. O mesmo não ocorreu com a cocaína, que ele voltou a procurar cinco meses após deixar a clínica religiosa. O jovem acabou sendo pego pela polícia, portando quatro papelotes de cocaína de dez gramas. Naquele dia, os traficantes fugiram, cada um para um lado, e Vinícius e mais dois colegas foram levados para uma delegacia, onde ficaram trancafiados como traficantes em um quadrado de um metro por um, durante uma noite. Após nove dias de delegacia, foram levados para a Fundação Casa, onde estão há seis meses.

O adolescente está prestes a sair da internação. Ele diz querer retomar os estudos – interrompidos na quinta série, aos 11 anos – e trabalhar no restaurante do pai, no litoral paulista, de onde algumas vezes pegou dinheiro para comprar drogas. “Meu pai falou que tem um curso de petróleo e gás em São Sebastião, de graça. Eu nunca dei ouvidos ao meu pai, mas agora vou fazer a vontade dele, e não a minha.”

Questionado se está confiante com a decisão, Vinícius diz: “É melhor. Preciso pensar em como será a minha vida lá fora. Aqui dentro é outro mundo. Não é nem mundo aqui. Não dá nem para ver o Sol. Droga não traz felicidade para ninguém. Eu precisei parar aqui para pensar nisso.”



ENTREVISTA

“A recaída é o grande desafio”

O médico psiquiatra Ronaldo Laranjeira, professor titular do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), é um crítico feroz da política antidrogas no País. Ele não acredita no Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, do governo federal, e diz que os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) não estão preparados para atender os viciados em crack. “A recaída é o grande desafio. Não é um tratamento simples ou para amadores”, afirma. Confira, a seguir, os principais trechos dessa entrevista.

Fórum -  O crack surgiu no Brasil no início dos anos 1990. De lá para cá, houve alguma política pública capaz de combater a disseminação da droga?

Ronaldo Laranjeira - Não. O crack virou uma pandemia e não é um fenômeno mundial. É um fenômeno bem brasileiro, porque os governos – especialmente o final do governo Fernando Henrique Cardoso e todo o governo Lula – ficaram só observando a evolução do crack, quer seja no Ministério da Saúde ou na Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad).

Fórum -  Mas o senhor acha que as propostas do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas não vão sair do papel ou elas não têm eficácia para tratar o problema?

Laranjeira - Não vão sair do papel e não atingem o cerne do problema. Recentemente vi um documento do doutor Pedro Gabriel Delgado (coordenador nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde) falando sobre a existência de não sei quantos consultórios de rua e de não sei quantos Caps. A própria Associação Brasileira de Psiquiatria está questionando esses números. Onde é que estão todas essas coisas? Eu não vejo.

Fórum -  Por que o senhor discorda das propostas desse Plano Integrado?

Laranjeira - Algumas delas são incongruentes e inconsistentes. Eu absolutamente não acredito em consultórios de rua, um dos pilares desse programa. Se eu não tivesse dinheiro e meu filho estivesse na rua usando crack, gostaria que o Estado me protegesse e, primeiro, oferecesse internação, tirando o garoto da rua mesmo contra a sua vontade. Não se pode esquecer que um terço dos usuários de crack morre nos primeiros quatro ou cinco anos, e o consultório de rua fica oferecendo Band-aid, novalgina e pomadinha para os lábios queimados pelo crack. O cara está precisando de uma Unidade de Tratamento Intensivo (UTI).

Fórum -  Que outras iniciativas desse Plano seriam ineficazes?

Laranjeira - Vai falar para o diretor clínico do Hospital Albert Einstein, que é o melhor de São Paulo, que ele vai receber seis ou dez usuários de crack. Ele vai dizer que não tem estrutura para cuidar deles, não tem enfermagem, quartos especiais e nem segurança para o seu pessoal. Se isso é válido para o Einstein, imagina para o Hospital de Itaquera ou para as Santas Casas. Eu não deixaria uma enfermeira minha cuidar de um usuário de crack a noite inteira sem estrutura para lidar com esse problema. Eles não querem aceitar o fato de que é preciso  haver enfermarias especializadas para tratar a dependência química.

Fórum -  Por que não? Falta entendimento, vontade ou dinheiro?

Laranjeira - O fato é que há mais de dez ou 12 anos as pessoas estão fazendo essa mesma política, e o problema só aumentou. Na área social, o discurso vigente tenta escamotear a realidade crua das ruas e dolorosa das famílias que têm dependentes químicos. Recebo cinco ou seis e-mails todos os dias, de famílias do Brasil inteiro, perguntando o que devem fazer com seus filhos que são dependentes do crack e não querem se tratar.

Fórum -  E quantos usuários de crack são tratados nos Caps?

Laranjeira - O Ministério da Saúde não têm esse número, porque eles não sabem. O número é vergonhosamente baixo. Ligue para qualquer Caps de São Paulo e diga que você tem um filho usuário de crack que não quer ir para o tratamento. O Caps vai lhe falar: “Então, não é problema nosso.” E mesmo que o seu filho queira marcar uma consulta, eles marcam para depois de um mês. Um mês na vida de um usuário de crack é muita coisa. A probabilidade é que ele não vá à consulta, tenha uma recaída e continue usando o crack. E, mesmo que o cara vá à consulta, vai avaliar qual é a formação desses profissionais que lidam com o crack nos Caps. A grande maioria não tem formação para lidar com casos complexos. Esses centros não estão preparados para receber essa população, e a recaída no crack é o grande desafio. Não é um tratamento simples ou para amadores.

Fórum -  Além das enfermarias especializadas, que outras iniciativas poderiam combater a disseminação do crack?

Laranjeira - A internação dá um período de estabilidade mental e psiquiátrica à pessoa. É o começo do tratamento. Também é importante haver um sistema de pós-internação, como as moradias assistidas, onde a pessoa possa ficar um período maior e reconstruir a vida, voltar a estudar e a trabalhar, não estando necessariamente internada, mas em um ambiente protegido. Isso porque, na maior parte das vezes, a família do usuário de crack está muito desgastada e não tem condições de recebê-lo de volta. Além disso, seria preciso criar uma parceria com os grupos de autoajuda, como os Narcóticos Anônimos. Hoje, quem mais atende os usuários de crack, em números, são os Narcóticos Anônimos e grupos como o Amor-Exigente. Eles atendem cem vezes mais que os Caps, sem nenhum custo, pois é um trabalho voluntário.

Fórum -  Hoje, o Brasil é o maior mercado de usuários de cocaína na América do Sul. Como o senhor imagina que serão os próximos dez anos?

Laranjeira - O controle acaba ocorrendo não pelas políticas sociais, mas porque muita gente morre. Porém, acho que o número vai continuar alto e vamos seguir nessa epidemia de crack. Eventualmente, vão surgir outras drogas. Mas temos que dar um crédito para o novo governo, porque agora a Senad foi para o Ministério da Justiça [antes o órgão pertencia ao Gabinete de Segurança Institucional]. Não sei se isso vai mudar algo para melhor.

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