quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

"Preconceito nunca se apresenta claramente", diz 1º embaixador negro do Brasil; leia relato

06/01/2011 - 08h35

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DEPOIMENTO A
*JULIANA ROCHA*
DE BRASÍLIA

Meu pai foi agente de portaria, um contínuo (...) O preconceito nunca se
apresenta claramente. No campo das relações humanas, você nota reação
positiva ou negativa (...) É preciso que haja ações afirmativas (...) Eu não
me beneficiei de nenhuma política. Na minha época, isso não havia.

Filho de um contínuo, Benedicto Fonseca Filho, 47, foi promovido em dezembro
a embaixador, o primeiro negro de carreira. E o mais jovem. Passou por
Buenos Aires, Tel Aviv e Nova York. Vai chefiar o departamento de Ciência e
Tecnologia. Ele declara orgulho de ser negro e filho de pais humildes que o
educaram para chegar ao topo na casa mais aristocrática do país.

Nasci no Rio, em 1963. Mudei para Brasília em 1970 porque meu pai veio ser
funcionário do Itamaraty. Ele foi agente de portaria, que é um contínuo.
Quando eu tinha nove anos, toda a família foi para a [antiga] Checoslováquia
[no leste europeu], quando meu pai foi removido para Praga por três anos.
Sergio Lima/Folhapress[image: Embaixador Benedicto Fonseca Filho, na
escadaria do Itamaraty, em Brasília]Embaixador Benedicto Fonseca Filho, na
escadaria do Itamaraty, em Brasília

Naquele tempo, todos os funcionários das embaixadas eram de carreira. Hoje,
esses são terceirizados. Foi essa experiência internacional que me despertou
o interesse pelo Itamaraty. Talvez por ter estudado em escolas
internacionais, na escola francesa e na americana.

Meu pai e minha mãe, na sua humildade, nunca pouparam esforços para nos
proporcionar as melhores condições de estudo.

Hoje, meu pai tem 84 anos, já é aposentado há 14. Minha maior satisfação foi
eu ser promovido com ele ainda vivo. Ele ficou tão ou mais contente do que
eu.

Fiz o concurso [do Itamaraty] em 1985 e entrei de primeira, aos 22 anos.
Quando saiu a lista dos aprovados, um jornal de Brasília fez uma matéria que
dizia: "Mulher e negro passam em primeiro lugar no Rio Branco". A mulher foi
o primeiro lugar e eu, o segundo.

Vinte e cinco anos depois, uma mulher passar em primeiro lugar já não causa
tanto espanto. Naquela época, tinha só uma mulher embaixadora.

Hoje, são várias mulheres embaixadoras, acho que 20, ocupando postos
importantes. Talvez chame muito mais atenção quando um negro ascende na
carreira do que uma mulher.

Em relação à diversidade racial já avançamos muito, mas ainda temos muito
que avançar. Houve um olhar para essa questão na gestão do ministro Celso
Amorim.

*PRECONCEITO*

O preconceito nunca se apresenta claramente. No campo das relações humanas,
você nota reação positiva ou negativa das pessoas.

Mas seria leviano dizer que eu experimentei uma situação que pudesse
identificar como preconceito [no Itamaraty]. Nunca houve.

Me lembro de um caso [de reação positiva]. A primeira vez que fui à ONU em
2004, um colega do Caribe me chamou no canto para dizer que pela primeira
vez via um diplomata negro na delegação brasileira.

Ele enfatizou: "It's the first time ever, ever. We are proud" [É a primeira
vez. Estamos orgulhosos].

Eu faço um paralelo com os EUA, que tiveram um sistema de cotas importante
para criar uma classe média negra que se autossustenta, que agora pode
seguir em frente sem a necessidade de políticas diferenciadas.

No Brasil, as cotas das universidades vão produzir uma diversidade salutar.

*COTAS NO ITAMARATY*

É preciso haver políticas de ação afirmativa. No ministério, damos bolsas
para proporcionar condições financeiras adequadas para que os
afrodescendentes se preparem, o que tem tido um resultado muito positivo.

O objetivo é dar condições para pessoas que têm talento. Algumas vezes é
visto como se estivessem recebendo um privilégio. Temos o cuidado de
preservar as condições de preparação.

Eu não me beneficiei de nenhuma política. Na época, não havia. Mas olhando
retrospectivamente, creio que me beneficiei de certas circunstâncias.

Tive oportunidades que raramente os negros têm. Morei no exterior, estudei
idiomas com a ajuda do Itamaraty, porque ajudavam nos estudos dos filhos dos
funcionários.

Os críticos das cotas têm uma contribuição que não é irrelevante. Eles dizem
que, cientificamente, não há raças, não há diferenças entre brancos e
negros.

É uma desmistificação para quem acha que há diferenças intrínsecas. Mas há
uma falha no argumento. Do ponto de vista humano e das relações sociais,
existem diferenças.

Basta ver os índices sociais, condições de saúde e de moradia para ver que
existe um problema. Isso não é tratado de maneira séria e aprofundada [pelos
críticos].

Nosso país tem muitos passivos. A preocupação social e racial tem que andar
lado a lado. Ou deixamos as coisas acontecerem, ou tentamos uma intervenção.
O assunto não pode ser jogado para debaixo do tapete.

*ÁFRICA*

Nos últimos anos, houve uma preocupação de diversificar as relações
externas, ter um olhar novo não só em relação à África. Resgatar elementos
de nossa identidade, cultura e sociedade.

Mas também avançamos na área comercial, levando em conta nosso interesse
econômico. Tenho orgulho de ser negro. Faz parte da minha identidade. E de
ser brasileiro. Mais do que isso, tenho orgulho de ser filho dos meus pais.

http://www1.folha.uol.com.br/mundo/855708-preconceito-nunca-se-apresenta-claramente-diz-1-embaixador-negro-do-brasil-leia-relato.shtml

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